O Caminho do Artista envelheceu bem?
Relembrando o caminho e três outras dicas de livro
Dois anos atrás, terminei de ler o livro O Caminho do Artista, da Julia Cameron, fui completamente transformada pelos exercícios que a autora propunha e fiz um quadrinho pra contar a experiência. Não fui uma leitora tão inocente a ponto de depositar as minhas esperanças e sonhos nos ombros desse livro. É um livro que pode fazer você sonhar mais alto do que é seguro. Revirei os olhos em algumas partes da leitura e fiz minhas críticas. Porém, de alguma forma, era bem a leitura que eu precisava naquela circunstância, e o livro me ajudou a fazer reflexões e tirar conclusões que eu adiava repetidamente. Ele me ajudou a ter coragem e sim, a ser um pouco ingênua também. Por que não?
Recomendei o livro repetidas vezes para muitas pessoas. “Dá trabalho, mas vale a pena! Não precisa se preocupar em fazer todas as tarefas, só vai fazendo!”, eu dizia. “Tem gente que reclama porque ela fala muito de Deus, é verdade, tem umas partes meio gospel, mas tem outras que falam direto com o coração.” Fazendo aniversário de leitura, reli meu quadrinho e pensei no que ficou. Eu ainda recomendaria esse livro tão enfaticamente, ainda que com reservas? É minha indicação número 1 para o artista que quer encontrar seu lugar no mundo? Percebi que não.
O livro é bastante pretensioso, prometendo desbloquear sua criatividade em apenas 12 semanas. Que promoção boa! Ele se vende como produto, e a autora traz repetidas histórias de sucesso de ex-alunos para lhe convencer. Se você estiver num momento frágil, periga acreditar acriticamente. Se for uma pessoa muito cética, não conseguirá prosseguir na leitura. Mas se você se entregar de verdade para o que o livro te oferece, você pode se surpreender. O livro com certeza fez parte de um processo curativo pra mim, de buscar minha artista interior abandonada e pegá-la no colo, toda essa narrativa de auto-ajuda que a autora conta. A escrita indulgente tem seu valor. Permite que a gente seja meio boba e acredite naquilo que não nos permitimos pensar quando somos muito racionais.
O exercício das páginas matinais foi amor à primeira vista. A autora recomenda escrever 3 páginas inteiras de pensamentos em livre associação, todos os dias. Eu não escrevi todo dia, seria impossível, mas preenchi dois cadernos inteiros. Relendo as páginas com a distância de anos, vi muita autocobrança para ser perfeita, para ser produtiva, para tomar decisões com absoluta certeza dos resultados. Muitos lamentos que ecoaram na terapia. Também me permiti sonhar. Escrevi frases que não ousaria dizer em voz alta. As páginas matinais são uma excelente ferramenta de autoconhecimento. Escrever sem julgamento e reler com distanciamento. De vez em quando, ainda sento para escrever algumas páginas, como um despejo de aflições e desejos. É bom pra tirar do caminho da mente.
Os exercícios de encontro com a artista nada mais são que a livre experimentação da arte como um compromisso. Separar um tempo para experimentar sem um objetivo, sem um olhar crítico, e sim como uma brincadeira, é essencial pra alimentar nosso poço criativo. Os encontros são substanciais para a prática artística continuada e apaixonada.
Dois anos depois, não vou dizer que desrecomendo o livro O Caminho do Artista de Julia Cameron, que tem exercícios estimulantes e foi a leitura condescendente perfeita que eu precisei numa conjuntura específica da minha vida. Nesse tempo, saí do meu trabalho não-criativo e comecei uma graduação em Artes. Como uma aluna modelo, me tornei um ótimo exemplo pra ser citada pela autora no livro. “Janaína estava infeliz em seu trabalho como engenheira, e, após as 12 semanas do curso, conseguiu resgatar sua artista interior e entender que queria mesmo era realizar seu sonho de criança e desenhar todos os dias!” Mas não sei se conseguiria repetir aqueles exercícios esotéricos e numerosos. Nem acredito mais que uma disciplina tão rigidamente baseada no autoconhecimento seja o melhor pro aprendizado artístico. O autoconhecimento também pode vir do acaso e da experimentação, pode vir dos arredores e pode vir do coletivo.
Então, não, não é mais a minha indicação favorita de livro criativo. Na verdade, pensei um pouco e me vieram…
Três outros livros em vez d’O Caminho do Artista
Nesse curso de criatividade que bolei com três livros de bibliografia sugerida, com certeza você vai atingir os mesmos objetivos e até mais: vai aprender sobre teoria da arte, entender o que você deseja como artista e desbloquear sua criatividade irremediavelmente. Não tem prazo. Começa quando você quiser, e provavelmente nunca vai terminar, porque o aprendizado é pra sempre. Pode inclusive não atingir objetivo nenhum, mas vai se divertir no processo sem revirar os olhos. São três: um livro teórico, um livro motivacional e um livro prático.
1.
Universos da arte, Fayga Ostrower
Um livro para ler a passos lentos, a parte teórica
No último ano, me descobri uma grande fã da Fayga, artista de quem eu nunca tinha ouvido falar e que de repente estava em todo lugar. Fayga Ostrower é uma artista polonesa-brasileira que chegou no Brasil ainda criança e desenvolveu uma carreira linda nas Artes Visuais. Ela foi uma pioneira da arte abstrata no Brasil, e criou composições profundas e sublimes como gravadora, pintora e desenhista. Este livro é uma compilação de uma oficina de arte que ela ministrou para operários de uma fábrica de encadernação. Sem tarefas práticas, apenas teoria. No livro ela fala de composição, peso e leveza na imagem, linha e forma, usando como exemplo obras de arte famosas, do renascimento ao modernismo. Ela traz as dúvidas dos alunos e os questionamentos surgidos em sala de aula. Que curso maravilhoso! Fayga é uma grande arquiteta do acaso e da intuição, e sabe colocar em palavras os sentimentos que uma obra imprime na gente. Embora seja um livro apenas teórico, são tantos conhecimentos bonitos que eu me sinto sempre estimulada a criar.
— E nós — insistiu o operário —, para entendermos a arte, teríamos que sabê-la em palavras?
— Não, absolutamente — respondi —, nem em palavras nem em definições. Têm, isso sim, que poder sentir. Talvez sintam de modo melhor e mais profundo a partir das informações que eu tenho a dar. Mas, mesmo no que se refere às informações, não se preocupem. De minha experiência como artista e professora, eu me dou conta de que, de qualquer maneira, cada um há de se lembrar apenas daquilo de que interiormente necessita. O resto caíra no esquecimento: palavras, ideias, definições, não importa. Cada um de nós aprende o essencial exatamente desta maneira: selecionando aquilo de que precisa.
Para ler mais: Criatividade e processos de criação e Acasos e criação artística, outros livros de Fayga Ostrower que também estão na minha prateleira.
Para comprar: sugiro buscar na Estante Virtual ou no sebo de sua preferência. A edição da Editora Unicamp (capa acima) é a minha, a leitura é agradável e as imagens são coloridas, mas ficam todas no fim do livro, o que é um saco, eu acabo procurando as figuras na internet. Eu preferi a edição antiga da editora Campus, que vi na biblioteca da minha universidade, com as imagens ao longo do texto.
2.
Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke
Um livro para ler e reler, a parte motivacional
Na minha primeira aula de Gravura com a professora Ana Lisboa, na UFPE, ela levou este livro e pediu a uma aluna que lesse a primeira carta em voz alta. O conteúdo da carta, escrita em 1903 pelo poeta Rilke ao jovem poeta aprendiz Franz Kappus, mesmo na leitura hesitante de uma colega, me deixou tocada como se falasse diretamente comigo. As cartas escritas por Rilke trazem conselhos tão valiosos e certeiros que o livro é impresso e reimpresso há mais de cem anos. Minha cópia, datada de 1983 e comprada num sebo, é a 11ª edição. Descobri que minha mãe, minha tia, o namorado de uma amiga, todos releem esse livro com frequência para renovar suas esperanças, e eu entrei pro clubinho. É um clássico atemporal.
“O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila da sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com essa necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e a testemunha de tal pressão.”
(Trecho da primeira carta, tradução de Paulo Rónai)
Para comprar: Estante Virtual ou no sebo de sua preferência. Tem uma versão nova que inclui as respostas do jovem poeta Franz Kappus, mas uma amiga me relatou que ele é muito baba ovo, então eu mesma deixei pra lá.
e
3.
Aprender de coração, Corita Kent e Jan Steward
Um livro para devorar, a parte prática
Corita Kent, a freira pop, foi uma serigrafista iconoclasta e professora de arte que revolucionou o ensino artístico com suas técnicas pedagógicas. Inventiva, criativa, exigente. Corita é brincalhona, e seu aprendizado é baseado na produção exagerada e experimentação intuitiva. Ela acredita que todos podem ser artistas e é inspiradora do jeito mais divertido possível, mas também sabe cobrar uma produção dedicada e vigorosa. Alguns dos exercícios do livro envolvem observação de sombras, criação de carimbos, confecção de embalagens decoradas e o uso da sua ferramenta clássica: o visor instantâneo. Com um visor manufaturado por nós mesmes, somos capazes de exercitar os músculos do olhar. Aprendemos a olhar com atenção, a olhar demoradamente, a olhar suavemente. Recomendação extraordinária para a parte prática dos estudos.
“Todos nós somos capazes de falar, de escrever e, se os bloqueios forem removidos, todos podemos desenhar, pintar e criar coisas. Desenhar, pintar e criar coisas são atividades humanas naturais, mas em muitas pessoas essas sementes permanecem em estado dormente, como potenciais ou desejos.
Este livro contém direções para proteger ou nutrir essa semente, permitindo que ela cresça e se transforme em uma árvore poderosa que sustenta o fruto da esperança. Fazer e criar são atos de esperança, e, à medida que essa esperança cresce, os problemas do mundo deixam de nos oprimir. Lembramos que nós — como indivíduos e coletivamente — somos capazes de fazer algo a respeito desses problemas.”(Tradução de Livia Azevedo Lima)
Para ouvir mais: os episódios do podcast Lombada, da própria editora, sobre Corita: Criar é revolução e Criar é quebrar todas as regras.
Para comprar: direto com a editora Clube do Livro do Design. O livro está um capricho!
Naturalmente, os três livros podem ser lidos antes, durante, depois ou em vez de O Caminho do Artista. As regras mudam toda semana, e é você quem decide a ordem. Pode ser até que a ordem não seja nenhuma. Quem sou eu, afinal?
Alguém chegou aqui pela edição sobre O Caminho da Artista? Me pergunto quantos que leram meu quadrinho engajaram depois na leitura e nos exercícios do livro, e quais foram as repercussões. Tiveram suas vidas transformadas como a minha? Eu conversei com algumas pessoas que ora começavam ora paravam o livro, e uma vez até recebi uma cartinha endereçada a mim como prática de um dos exercícios do livro. Ela me emocionou demais. Sei que foi um exercício poderosamente revelador para o remetente, que também está na sua trajetória pessoal de como ser um artista. Obrigada, primo!
Dessa vez, trago recomendações das quais não tenho absolutamente nenhuma ressalva. São livros que tampouco pecam em serem idealistas e nos permitirem sonhar. De maneira honesta, nos deixam com a cabeça nas nuvens sem tirar os pés do chão. Espero que eu tenha feito jus aos livros. Ao Caminho também. Só estou recomendando outros livros porque eu já o li e ele já cumpriu seu papel comigo. Talvez ele até seja exatamente o livro que você precisa nesse momento, como foi para mim dois anos atrás. Hoje, o mantenho com carinho na minha estante.
Se você se interessou pelo meu quadrinho, pode comprar impresso na minha lojinha. As compras na lojinha me ajudam a continuar desenhando todos os dias, como é o meu sonho.
Boas leituras e até a próxima!
Jana
Tenho guardado em algum lugar e não li. Mas depois de ler seu texto e ver Fayga Ostrower recomendada junto... amo! Vou ler.
MEU DEEEEUS, tu teve aula com Ana Lisboa? Eu também tive em Gravura 1 e 2, também tive aula com Pedrosa aaaaaa que saudade das aulas de gravura.