No início do ano passado eu comecei um projeto de desenhar todo dia. Um projeto ambicioso, um dia tem apenas 24 horas e tem tanta coisa que a gente já faz todo dia. Eu tinha um caderno que comprei pra fazer diários de viagem uns anos atrás que estava parado na estante. Peguei ele e me propus a desenhar um quadrinho por dia, com cada página contendo quatro quadros. Estilo simples, apenas a caneta, sem colorir, uma ideia rápida. O que poderia dar errado? O projeto durou duas semanas. Me embolei nas tarefas e não consegui dar conta da disciplina de mais um hábito diário somado a todos os outros hábitos diários que eu já acumulava. Era natural que isso acontecesse. Se eu for fazer todo dia tudo o que dizem que é pra fazer todo dia eu não faço mais nada.
Deixa que ali no início do mês de agosto tive meu celular furtado e minha vida se virou do avesso e novamente vi o caderno criando teia de aranha na estante. Peguei e reiniciei meu projeto. Um desenho por dia. Sem nenhum surpresa, não consegui desenhar todo dia. Ao longo dos meses, fui repetidamente atrasando e tirando o atraso dos desenhos. Me vi desenhando coisas que tinham acontecido 10 dias antes. Persisti. Tem dias mais fáceis que outros. Graças mais à minha teimosia do que à minha disciplina, hoje sigo com oito meses ininterruptos da minha vida desenhada.
Depois de um quadrinho para cada hora do dia, um quadrinho para cada dia. Como resumir o dia em uma única imagem? A parte mais marcante? Para o bem ou para o mal? O que eu quero lembrar daquele dia? O que eu quero esquecer? Não tenho dificuldade de encontrar um tema pra desenhar. Geralmente é um acontecimento importante. Ou alguém que eu encontrei. Algo que eu fiz. Ou só uma paisagem que quero lembrar. Ao olhar novamente pro desenho, lembro o que senti naquele dia. Um vento sopra no meu rosto, escuto a conversa que estava rolando no ambiente, ou a música, ou apenas a brisa. Como uma imagem que vaza pelos limites do quadro que eu desenhei, relembro o que envolveu aquele momento.
Eu me esforço bastante para guardar essas memórias em um espaço fora do meu corpo. Não o registro fotográfico, mas também. Não o registro em vídeo, esse eu sou péssima. Mas o registro da história, do vivido, dos sentimentos partilhados, do acontecido. Tenho tanto medo de esquecer, quero lembrar de tudo. Em algumas conversas com amizades antigas, elogiam minha memória. Em outras, esqueci de um momento que parece precioso demais para não ser lembrado a vida toda. Quero valorizar cada coisa vivida nesse período aqui na Terra. O tempo passa e não volta nunca. Se eu pudesse, anotaria cada coisa vivida todo dia. Faria quadrinhos para cada hora de todos os dias. Mas não dá tempo! Enquanto isso, faço um desenho por dia.
Guardar as memórias no papel é meu meio de guardá-las dentro de mim. Cada desenho é uma fotografia tirada e emoldurada que eu penduro no meu diário ilustrado. Revisito de vez em quando, folheio as páginas e relembro o dia que fui escrever ou desenhar no parque e me senti tão integrada com a cidade. Sinto novamente as borboletas no estômago que senti quando vi aquela exposição. Relembro aquele banho de mar na Bahia, ou como estava viciada naquele livro durante toda aquela semana, não só aquele dia. Identifico os mesmos rostinhos através das páginas, dos amigos e colegas com quem compartilho os dias. Vejo aquela pessoa com quem cruzei e imaginei uma história de amor inteira mas que afinal não deu em nada.
Levei esse meu diário ilustrado nas várias viagens que fiz nas férias e, desenhando na frente dos outros por falta de oportunidade de ficar sozinha na mesa boa, todos se interessavam nos desenhos. Queriam ver, mas respeitavam minha privacidade quando eu dizia que era um diário. É um exercício íntimo, pessoal, e acho importante fazê-lo para mim sem o pensamento de compartilhar, porque fica mais leve e me sinto mais livre. No meio do caminho do diário me percebi no ímpeto de compartilhá-lo, porque tinha muita coisa bonita ali. Queria mostrar pra pessoa que tinha desenhado ela no resumo do meu dia. Que, naquele dia, ela tinha sido meu acontecido mais memorável.
Eu tenho desenhado bastante do último ano pra cá e enchido cadernos e folhas soltas. Nunca fui muito fã de desenhar em cadernos, na verdade, sempre preferi folhas soltas, mas agora tô entendendo a falta de praticidade de ter um monte de folhas A4 para armazenar sabe-se lá como. Ainda não tenho um método, uma rotina criativa, uma mesa arrumada, mas já tenho alguma regularidade na prática. Por mais contraditório que seja, eu continuo sentindo vontade de ter mais tempo pra desenhar. Quanto mais desenho, mais eu preciso desenhar. Nesse exercício de fazer algo todo dia, me vejo repetidamente no ciclo de escolher uma solução preguiçosa ou explorar uma solução inteiramente nova. Experimento composições novas, texturas, formatos. As soluções preguiçosas vão ficando mais interessantes e minha zona de conforto vai se ampliando.
Esse exercício foi inspirado por muitas ilustradoras que fazem a prática de um doodle por dia numa página de calendário. E foi catalisado pela maravilhosa Fernanda Torres, que iniciou esse projeto na pandemia e encheu folhas gigantescas com pequenas aquarelas do seu dia-a-dia. Foi depois de assistir esse vídeo que eu decidi que queria fazer o meu também. É mágico ver seus dias lado-a-lado em desenhos que você mesma fez. Um álbum de momentos que você escolheu registrar. Momentos que você perdeu de tirar foto, ou cuja foto seria impossível de tirar. Você desenha do jeito que quer lembrar. E depois tem uma máquina do tempo em forma de caderno.
O caderno que eu uso é bem pebinha, a página é fina e o desenho vaza pro outro lado. Se uso lápis e pinto com lápis de cor, fica a marca do traço de grafite. Não foi uma escolha consciente, o nome do caderno é Académie e eu esperava mais dele sim. Mas, sendo um caderno feio, isso me ajuda a desapegar do desenho que faço nele. É como se o próprio caderno me sussurrasse: Não precisa ficar perfeito.
Nos últimos meses me percebi cada vez mais envolta de cadernos. Cadernos para desenhar, cadernos para escrever, cadernos para fichar livros, cadernos para listas, cadernos para anotações da aula, cadernos artesanais, cadernos pequenos, cadernos A4, cadernos importados. Cadernos.
Quando chegou a virada do ano, não resisti e fiz meu próprio caderno para usar de bullet journal. Fazia um ano que eu tinha deixado o hábito de fazer bullet journal (para quem não sabe, é um caderno que você transforma em agenda na base da munheca) para usar uma agenda comprada pronta, e embora tenha ficado muito feliz em ter menos trabalho com isso ao longo de um ano inteiro, eu senti uma falta gigantesca do processo manual de elaborar as páginas. O ritual de preparar as páginas que você vai preencher, ter mais espaço para colagens, para desenhos, decorar do seu jeito, com a sua letra, faz parecer que você está colocando mais intenção nos seus dias. Preparar o meu mês e imprimir meu toque nas páginas. Eu demorei dois meses pra terminá-lo, mas como o ano só começa depois do carnaval, ele ficou pronto bem a tempo.
Eu tinha mesmo visto uma previsão de que em 2024 teríamos o retorno dos cadernos. E vocês, usam cadernos também?
Na edição passada, me pediram para compartilhar o autorretrato em carvão que fiz na aula de Desenho 2. Vou compartilhar dois, o que fiz no dia do Hourly Comic Day e o exercício da semana seguinte, um autorretrato de corpo inteiro.
Nessa matéria, experimentei desenhar realista muito mais do que eu costumo no meu dia-a-dia. Em algum momento do passado eu decidi que o desenho realista não era pra mim e que eu me sentia mais confortável num estilo cartum, que era minha zona de conforto. Nessas aulas me surpreendi me divertindo e gostando bastante do resultado do desenho realista. “Será se eu devo mudar meu estilo para algo mais realista?”, uma parte de mim pensou.
Minha ideia com essa edição era inaugurar a primeira newsletter de texto, sem quadrinhos. No meio do processo eu percebi que, ei, essa é mais uma edição de quadrinhos sim! Como não seria? Me sinto vulnerável compartilhando meu diário ilustrado, mas nem tem nada demais. Apenas uma amostra dos meus dias perfeitos. Obrigada pelos comentários e respostas no meu retorno quase um ano depois! Agora eu voltei pra ficar, porque estava com tanta saudade disso. Até mês que vem!
Que lindos seus registros. Queria saber desenhar pra poder fazer algo assim também. Na impossibilidade, guardo meus dias em formato escrito, em dois diários que mantenho: um que é um diário de cinco anos, em que cada dia você escreve em poucas linhas como foi o dia (é legal a partir do segundo ano que aí dá pra ir comparando com como foi no ano anterior) e outro que é um caderno em que escrevo de maneira mais alongada sobre o que quero recordar.
Amo sua news letter- e minha filha gosta de desenhar, é um super estímulo para ela..