Quando o pneu da sua bicicleta furar, é só remendar
Você vai precisar de
chave quinze, espátulas, remendo, cola, lixa e suas próprias mãos
Primeiro, você retira a roda da bicicleta
Com a chave você desmonta facinho, afrouxando os parafusos pro lado do coração
Use as espátulas para desenganchar o pneu
Tem que encaixar e deslizar pelo aro inteiro
como quem abre uma latinha de leite condensado
pra fazer um brigadeiro
Com o pneu solto, vista ele feito bambolê
Entre nesse túnel e equilibre na cintura
O que era aperreio já virou brincadeira
Olhe pras mãos, elas devem estar imundas
É a hora perfeita de pedir um registro
Se estiver com um amigo
E depois a gente volta pra investigação do sinistro
Passe a mão delicadamente por dentro do pneu
para tentar encontrar o que furou a câmara
Pode ter sido um prego, uma saudade, um gatilho ou um caco
Encontre e descarte feito pedra no sapato
Analise a câmara, localize o furo
Alguns furos são grandes, chamativos, vai ser fácil
outros parecem mordidas, vêm em pares
alguns são pequenos, se escondem, os mais safados
Mas vão ser os mais fáceis de resolver
depois de encontrados
A câmara pode já ter alguns remendos
que contam de outros quilômetros furados
Remendos juntas em Bombinhas, em meio a praias, morros e paletas
Remendos juntas na ilha, no caminho de um bar ou de um parque
Remendos que você fez sozinha,
Aventureira, fixeira e atleta
Suas mãos compridas e delicadas que escreviam, seguravam, acariciavam, remendavam
sujas de graxa e asfalto pra não parar de andar de bicicleta
Se ainda não tiver encontrado o furo,
encha a câmara e mergulhe numa bacia de água
Pé quente e cabeça fria
Um banho de chuveiro ou de cachoeira
é a melhor coisa pra deixar a gente relaxada
e fingir que não choramos
a Lagoa da Conceição inteira
Observe o ar que sai do furo
Observe o ar que entra e sai pelas narinas
Deixe pra lá toda treta
Faça um mudrá cósmico
Que a gente pedala junta de Floripa até outro planeta
Pegue a lixa e lixe o furo
Até ficar lisinho, limpinho
Mas nunca imperceptível
O furo pode ser um mote
Vamos tapar com um esparadrapo
E transformar em anedota
Quando penso em você, penso em bruxas
Voando de bicicleta na lua cheia
Ao lado das bruxas que viraram pedra
Debaixo de pedras que viraram luz
A bruxa mais hábil em remendar câmaras
Em vez de um gato preto, uma gata branca
A gargalhada mais deliciosa e contagiante
Com suas covinhas
Um rosto que se acendia em sorriso
E queimava o corpo inteiro
De curiosidade, ansiedade, desejo
Você que nos ensinou
Pra amar o rolê
tem que amar o perrengue
só fura quem pedala
e toda amiga merece ser elogiada
Você que jamais se cansaria de pedalar,
talvez tenha cansado de remendar
Saiu mais cedo da festa
Escolheu se transformar em pedra
Depois você passa a cola
Espere secar um pouquinho
Tem que esperar senão não funciona
Pegue o remendo, coloque por cima
Com a mesma espátula de antes, a parte que eu acho mais difícil
Pressione o remendo de dentro pra fora
Bem forte
Bem em cima do furo
Ali exatamente onde dói
Aí
Insistindo
mais forte
mais forte
mais forte
E quando você cansar
Encha a câmara
e aguarde
o ar vazar todo de novo
Rodada em mais de seis mil quilômetros
Em terra de chão e betume
Da ilha ao continente
Sozinha e em muitas
Gasta, vivida
Essa câmara tanto remendada
Amada
Vencida
Furada
não pedala mais no asfalto
Queria ir de bicicleta com você no meu futuro destino favorito
Mas você que aprendeu a flutuar na bicicleta
foi embora pedalar no infinito
Quando o pneu da minha bicicleta furar,
eu vou me lembrar de você
O luto é um processo não-linear, às vezes acho que estou muito bem e é só uma tristeza enterrada fundo. Outras vezes ela escapa pelo furo da câmara de ar. Me despedir da minha amiga bruxa Samantha foi uma surpresa triste, que também não me surpreendeu completamente. Perceber que o mundo é mesmo dor e alegria. Que para sermos felizes, temos que encarar todo o desolamento que também existe. “Para amar o rolê, tem que amar o perrengue” é sua frase.
Esse texto-poema é uma homenagem-lembrança a minha bela amiga destemida. É um agradecimento às Bruxas da Bike, minhas parceiras de bicicleta nos tempos que morei em Floripa, onde eu aprendi a remendar câmara de bicicleta. Faz referência a nossas aventuras na Ilha da Magia, com seu folclore das bruxas da Praia de Itaguaçu, que estavam de boa dando uma festa e acabaram transformadas em pedra pelo diabo que não tinha sido chamado. Tem inspiração em Júlio Cortázar, mas foi motivado mesmo pelo belo poema de Maiakósvi ao poeta Iessiênin (tradução de Haroldo de Campos), que diz coisas muito parecidas ao que entendi e aprendi com Sam.
É preciso arrancar alegria ao futuro. Nesta vida morrer não é difícil. O difícil é a vida e seu ofício.
É um tema sensível, o dessa edição, e peço licença e perdão se atravessou alguém de alguma maneira indevida. Minha amiga partiu há seis meses e faz tempo que queria escrever algo para ela, mas não sabia como. Precisava encontrar o formato que servia de despedida, que expressasse a tristeza que sinto mas não fosse apenas triste. Quanto mais vivo mais percebo como precisamos falar do que tememos, então não queria deixar de escrever. É tortuoso lidar com sentimentos tão conflitantes como a saudade e o luto e tentar encontrar algum conforto nesse meandro. A vida e seu ofício são mesmo difíceis. Eu insisto, tentando arrancar alegria onde for possível.
Um abraço engraxado,
Jana
Instruções para dar corda no relógio, Júlio Cortázar
Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão. Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corrermos e chegarmos antes e compreendermos que já não tem importância.
que lindo, lindo, lindo. chorei a lagoa da conceição quase inteira. viva a Sam 🩵
Jana 🥹🥹🥹 sem palavras pra esse texto tão lindo 💖