Meu avô cheirava a própolis e a pum. Como um bom idoso nos seus setenta mais, ele não fazia mais cerimônia para soltar seus gases onde estivesse. O que faria mal é segurar. Como farmacêutico de viés naturalista, natureba, interiorano, o seu produto carro-chefe, o própolis, era também seu companheiro de todas as dores. Para dor de cabeça, cólica, ferimento, micose, tudo toma, passa, usa própolis. Tá com dor de cotovelo? Toma própolis.
Em seu centenário de nascimento, decidimos fazer o nosso 11º Encontro da Família Esmeraldo na cidade em que ele mais viveu, Pacoti, onde se casou e onde todos os seus filhos nasceram. Onde ele praticou o ofício de farmacêutico como proprietário da Farmácia São José. Pacoti é uma cidadezinha da Serra de Baturité, no Ceará, com temperatura amena, sol bonito, bananeiras e um rio que desagua na divisa entre Fortaleza e Aquiraz. Em Pacoti, as maritacas cantam desde cedo. No café da manhã da estância, tinha mamão, melancia, banana, creme de abacate, mugunzá, pão, queijo, bolo de milho, bolo mole e tapioca e ovo feitos na hora na panela de ferro. No caminho da entrada, um chão beijado de jambo. Por toda a estrada que nos levou até ali, palmeiras babaçu, bananeiras, ingazeiros, jaqueiras.
Nos anos que nossas vidas se cruzaram na Terra, eu não era muito fã do meu avô. Ele já havia sido diagnosticado com transtorno bipolar, e eu como uma criança ativa e sensata não entendia pra onde escapava o juízo dele. Eu não dava muita moral para uma pessoa desajuizada assim que ainda por cima soltava pum a torto e a direito. Ele tinha uma habilidade invejável: capturar você numa conversa e ser capaz de falar por horas com profundidade e convicção sobre os mais variados assuntos. Eu não me interessava muito pela conversa de adulto do meu vô, e ouvia ele apenas com meia orelha. Ele insistia que a gente tomasse o pó do coco babaçu, experimentasse as gororobas líquidas que ele armazenava em garrafas PET na geladeira e jogasse xadrez. Muito estudioso, ele colecionava livros pela casa inteira. Havia um cômodo preenchido apenas com livros. Livros nas paredes, livros no chão, livros acumulados em mesas, pilhas de livros do tamanho de uma criança, livros que formavam móveis para mais livros. Livros que eu não ousava ler muito porque sabe-se lá como aquele conteúdo me aproximaria do meu vô. Mas era irresistível folhear, enquanto atravessava aquela biblioteca improvisada e empoeirada, para me deparar com alguma fórmula misteriosa ou uma frase ininteligível pra uma recém-alfabetizada. Colocava no lugar de novo e continuava a expedição no inventário do meu avô, atrás de algum tabuleiro de Jiumanji ou de uma porta que a gente ainda não tinha aberto.
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Eu não lembrava a última vez que tinha estado em Pacoti. Não lembrava do arco com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Lembrava dos pedalinhos, mas não de todo o cenário onde eles ficam. Não saberia indicar em que rua ficava a casa dos Esmeraldos, indicação essa que foi provavelmente a frase mais falada nos dias que duraram o encontro: “Aqui era a Cadeia Pública, aqui o Posto de Saúde, e aqui em frente começava a casa do papai, no cartório, e ia até aqui, depois era a casa da Dona Celeste, amiga da mamãe”, disse minha mãe todas as vezes que a gente passou em frente.
Durante três dias, no último fim de semana de junho, tivemos atividades em quase todas as horas do dia para celebrar os 100 anos do meu avô. Prestigiamos a final do Campeonato de Xadrez Raimundo Leite Esmeraldo. Visitamos o posto de saúde que ganhou o nome dele, no caminho do qual passamos pela rua mais importante, “Aqui era a Cadeia Pública, aqui o Posto de Saúde, e aqui era a casa do papai!”. Visitamos a Farmácia Viva e o Meliponário Raimundo Leite Esmeraldo. O historiador Levi Jucá nos contou suas histórias de como descobriu o vovô e mais outras histórias de terceiros. Como um bom professor e contador de histórias, a família toda prendeu a respiração enquanto se encantava com os laços que unem as pessoas ao longo das décadas. Visitamos também a Gibiteca de Pacoti, onde tive o deleite de encontrar meus quadrinhos ocupando a prateleira de autores cearenses.
Fizemos uma trilha na estância onde nos hospedamos, para tomar um providencial banho de floresta e desfrutar menos dos sons da mata, mais das risadas coletivas. Na rota do caipora, passamos por baixo de troncos e demos passos cuidadosos na lama, brincamos de trava-línguas e encontramos um coração na sombra das árvores. Colhemos limão, jambo, goiaba. No meio da mata, um portal no chão onde certamente vivem seres mágicos. À noite, as Três Marias se esconderam atrás da serra, tímidas, mas o cruzeiro do sul despontou para guiar os viajantes curiosos. Os primos viajaram na caçamba da picape, como se fossem os anos 90. Subimos de carro até o ponto mais alto do Ceará. Fez um friozinho gostoso, e eu que lembrava pouco da temperatura de Pacoti acabei levando menos roupa do que o necessário. Na noite da sexta, minha mãe começou a sentir a garganta querendo irritar. “Vou tomar própolis”, emendou.
O grande evento do encontro foi a Celebração do Centenário de Nascimento com a exibição do documentário Esmera(l)do, que conta a história do meu avô a partir de personalidades e amigos de Pacoti. Para seus netos, conhecer o Seu Esmeraldo a partir do olhar do outro, daqueles que conviveram com ele na farmácia, no xadrez, nas praças e nas casas, é quase reconhecer nosso avô. Uma decisão da família, dos filhos, foi de não participar do documentário, de deixar os de fora falarem de quem foi o Seu Esmeraldo.
Como farmacêutico, meu avô curava de gripe e sarampo a verruga no dedo e paralisia infantil. O vendedor de mel chegava para vender suas garrafas e depois comprar remédios na farmácia e meu avô reclamava que ele estava fazendo tudo ao contrário, que o verdadeiro remédio era o mel. Descobriu o coco da palmeira babaçu, farta na região, e todas as suas propriedades milagrosas, fazendo questão de extrair o pó até o fim da vida. Todos os filhos tiveram sua experiência de descascar o coco babaçu no Quarto do Babaçu, nos fundos da casa da rua do canal, já em Fortaleza. Meu avô era um renomado farmacêutico, um homem especial que curava enquanto contava piadas e se amigava com todo mundo. Ele fazia cursos EAD quando o online nem existia, com apostilas trazidas pelo carteiro. Levou o primeiro xadrez a Pacoti e formou a primeira geração de enxadristas da cidade. Tendo descoberto o jogo nas revistas que assinava e nos livros que lia, um estudioso ávido que era, percebeu que a cidade precisava daquilo. Tentou comprar o jogo na capital, não encontrou. Na melhor solução se não tem, faço eu mesmo, meu avô reuniu as instruções e diagramas do jogo e encomendou o tabuleiro e as peças no artesão marceneiro da cidade.
Eu não lembro a última vez que tinha pensado tanto no meu avô. Mais recentemente, adulta, tomando meu própolis, meu mel e recusando remédios de farmácia pra curar uma garganta inflamada, me percebi muito mais ouvinte do que o meu avô me dizia do que eu imaginava com minha meia orelha atenta. Até falas que eram bordões dele eu me pego dizendo com naturalidade como se fossem originais minhas. Tenho fotos no tabuleiro de xadrez, e hoje guardo minhas próprias gororobas na geladeira. Um coco babaçu decora a minha mesa. A herança que carrego no meu sobrenome é forte, e muitas vezes tão embrenhada nas minhas atitudes que eu me engano achando que é um traço exclusivo meu.
Levei meus cadernos de desenho e fiz alguns registros da viagem. Não é trivial arranjar tempo sozinha pra desenhar numa viagem coletiva, e desenhei muito bem acompanhada. Encontramos a mesinha de piquenique perfeita para desenhar. Minha tia Nieta, guardiã de memórias da família, levou uma tela em branco e tubos de tinta de diversas cores para cada um dar sua pincelada e pintarmos um quadro do encontro. Quem iniciou os trabalhos foram meus primos artistas com cenas tão delicadas que os pintores seguintes conseguiram enxergar o potencial do quadro. Pintaram o vovô e a vovó, um selo do encontro, uma abelhinha. Emendei a paisagem vista do ponto mais alto do Ceará, a oeste de Guaramiranga, Caridade, Canindé. A última atividade do encontro foi uma contemplação espontânea da obra pintada a muitas mãos, mãos direitas, mão esquerda, mãos idosas, mãos de criança, mãos de fada, mãos indecisas, mãos amadoras. De elementos da viagem a elementos do vovô, entre elementos pessoais e coletivos criamos uma bela colagem. Vamos emoldurar e colocar o quadro pra rodar as casas da família, como um jeans viajante.
Com tantas histórias e anedotas, fiquei desejando ter cedido mais do meu ouvido ao meu avô na infância e adolescência. Na casa do canal, onde passei tantos natais e domingos, entre jogos de tabuleiro, banhos de chuveirão, filmes, vitaminas e gatos miando, eu podia ter jogado mais xadrez ou ousado experimentar aquela bebida de procedência duvidosa. Como não cedi, me junto a meus primos e fazemos uma reconstrução do que sabíamos do nosso avô naquela idade, e do que lembramos da casa de Fortaleza, onde ele fazia seus processos esmerados com o coco babaçu.
Na minha imaginação infantil, nos fundos da casa, ao lado do quarto dos livros, tinha um corredor comprido, quase infinito, com portas que se abriam dos dois lados. Era o laboratório secreto do meu avô. Nem sempre estava visível. Quando a entrada estava desimpedida, viam-se paredes e portais que não eram de alvenaria, não tinha portas de madeira, tudo de barro. Terra por todo lado, como o interior de uma pirâmide. Os corredores se esticavam e certamente em uma daquelas câmaras se abririam escadas para andares subterrâneos com mais salas misteriosas até chegar ao grande sarcófago. Grande contêineres gigantescos armazenavam o elixir fruto da pesquisa do meu avô. Muito mais alto do que uma criança, nunca vi o que era armazenado ali.
Minha prima Luna me desmentiu que não era nada de barro, era tudo alvenaria mesmo. Acontece que o pó do coco babaçu é tão fino, tão fino, que ficava em suspensão no ar e se depositava sobre todas as superfícies. Tudo tomado de pó. Como uma pirâmide. Luna não negou a parte das galerias subterrâneas nem decifrou o conteúdo dos sarcófagos.
Recolhido nas câmaras de pó de coco babaçu, Seu Esmeraldo fazia suas alquimias pra curar a modernidade. Eu, a mesma que então rejeitava as gororobas, hoje tenho a minha própria colônia de bactérias pra fazer kombuchas de frutas. Uma pessoa entrou na despensa aqui de casa, viu os vidros enormes com a colônia flutuante e perguntou o que eram aqueles fetos. Também tenho um laboratório secreto nos fundos da minha casa, sem perceber. Comento com todos os meus amigos que quero viver até os 120 anos, como ele também falava. Em seus últimos anos, ele ainda celebrava o xadrez, o babaçu e a flora medicinal, mas passava tempo demais entre depressões e manias para poder encantar uma criança. Encontrar meu avô através das lembranças de quem o conheceu em plena forma é me reconciliar com o avô fragilizado que eu conheci.
Eu bem gostaria de compartilhar um copinho de kombucha com meu vô. De limão, de maçã, de uva ou de jaca. Ou uma das misturinhas, manga e gengibre, caju e limão, quanto mais inusitada, mais ele acharia interessante. Mesmo que fosse de uma daquelas safras com pouquinho gás, sei que ele ia saborear até o final e agradecer: “Beleza pura!”
Estou cada vez mais transformando essa newsletter de newsletter-de-quadrinhos em newsletter-de-quadrinhos-e-textos-sobre-a-vida-a-arte-e-desenhos. Não me sinto tão hábil com as palavras, mas também confesso que não tenho me sentido tão hábil nos desenhos. Estudando percebo cada vez mais que sei menos ainda. Antes eu me satisfazia com tão pouco.
Esse texto foi escrito fresquinho após o encontro, e não pretende ser exaustivo sobre o assunto. Na verdade, estou sentindo que meu avô, minha família, minha relação com a natureza e meu desejo de viver até os 120 anos são temas para me demorar. Obrigada por me ler até aqui.
E se você é de Recife e deseja uma cultura de kombucha, eu tenho aqui pra doar.
Abraço,
Jana
Sinta-se hábil com as palavras. Foi uma viagem deliciosa ler sobre Pacoti, seu avô e você.
jana, mt obrigada por levar a gente pra viajar contigo! amei conhecer teu avô e pacoti daqui do conforto de casa tomando chá adoçado com mel. amei teus textões, pode escrever mais e agradeço que coloque furtivamente uns desenhos aqui e ali (gostei demais dos c/ lápis de cor)