Quando eu te adotei, você já tinha uma vida a menos.
Você também já tinha seu nome de gato.
Como você não me disse qual era, te dei o nome de Artemis.
Não tanto pela sua aura selvagem de caçadora, nem por me considerar uma garota mágica. Foi pelo seu rostinho que parecia já saber de tudo, muito apta a cometer crimes.
Você gostava de ficar na varanda, olhando a paisagem.
Ver a rua, os prédios, a mangueira gigante no quintal ao lado, o céu mudando de cor.
Era terceiro andar, mas nos anos 2000 ninguém tinha tela nas janelas.
Você atravessava pro outro lado da grade e ficava na beiradinha do azulejo, entre nossa varanda e o abismo, contemplando a vista.
Uma vez te resgatei no suporte do ar condicionado como se nada tivesse acontecido.
Foi ali que você perdeu sua segunda vida? Ainda bem que tinham mais cinco.
A terceira vida você perdeu no susto.
Um carro buzinou e seu coração parou.
Eu estava te levando no veterinário e senti palpável o estresse que te acometeu.
A quinta vida se perdeu na mudança.
Com todo o alvoroço dos empacotamentos e das pessoas estranhas desfazendo a casa, você esqueceu ela no apartamento antigo.
Puxou a mim.
A sexta vida você perdeu quando Nina se foi.
Não eram amigas, mas foram companheiras. Morreu do desgosto de ficar sozinha.
A sua quarta vida você já tinha perdido enquanto dormia. Escapou sozinha, pelo fio do bigode...
Só tinha sobrado uma vida.
Como pode, outras seis terem passado tão rápido?
Essa você poupou.
Viveu sua vida de gato aproveitando cada bocejo.
Comendo de manhã, de tarde, de noite.
Dormindo de manhã, de tarde, de noite.
No sofá, na cama, no chão.
Depois da merenda, um banho de sol.
Depois do banho de língua, um passeio na floresta.
Depois da caminhada, um cochilo vendo tv.
Depois da soneca no tapete, um carinho entre pernas.
A casa era toda sua.
Uma gata de poucos miaus
e muita janela
Sua pelagem, macia como uma nuvem, estava sempre cheirosa.
Parecia que tinha passado talquinho e colônia
e era tudo saliva
De manhã você rompia o voto de silêncio anunciando o dia aos berros e pedindo educadamente seu café da manhã pra gente não correr o risco de esquecer.
Um dia, você não conseguiu mais pular no sofá.
A pelagem nublada foi rareando.
As pernas foram se curvando no peso das vidas.
O perfume ganhou notas cítricas.
Não conseguiu mais acertar a caixinha de areia.
Tudo bem.
Só importava mesmo comer, dormir e tomar banho de sol.
Quanta vida você ainda tinha? Não conseguia mais lembrar onde tinha guardado.
Nos seus olhos, a sabedoria de uma galáxia inteira foi se tornando mais opaca
Queria eu tanto entendimento das importâncias na minha única chance
Fazer dos meus dias um sétimo da vida contemplativa
que você cultivou durante os 18 anos das suas sete vidas de gato com o mais puro deleite
Aposto como você sabia
até
o que vem depois da sétima vida
mas você nunca
nos contaria.
O ano em que Artemis chegou era 2006 e até conta no fotolog eu fiz pra ela, com. o nome de usuário /tenhofranjaemo. Eu escrevia as legendas nas palavras dela e assinava com “lambidas ;P”. Fiz festinha de aniversário no 1º e no 2º ano, com direito a bolo e lembrancinhas (chocolates para as humanas convidadas). Como ela não aproveitava muito, depois passamos às comemorações introspectivas. Nas últimas idas a Fortaleza ela fazia questão de deixar claro que estava chateada por eu tê-la deixado e só visitar às vezes, mas depois de uns dias logo vinha se aninhar nos meus pés e morder minhas canelas, rendida à saudade.
Artemis viveu conosco por 18 anos e meio. São muitos anos para uma gatinha, e sei que foram todos muito bem vividos, em suas sete vidas. Eu não morava mais com ela há quase 10 anos, quando me mudei de Fortaleza e ela ficou aos cuidados de mamãe, muito confortável num apartamento de 12º andar telado (a maior parte do tempo). Toda vez que eu visitava de férias, era difícil entender que ela estava de fato envelhecendo. Eu torcia comigo mesma pra ela viver até os 20 anos, pra fazer par com os meus 120.
Fiz um passeio no passado pelas nossas fotos e encontrei cada pérola. Pintei algumas delas no meu caderno de desenhos. Outras fiz de memória. E escrevi o texto que vocês leram acima. Seis anos atrás eu fiz um quadrinho em homenagem a minha outra gatinha que se foi na época, chamada Nina, que está disponível para ler no meu site. De repente, um padrão no meu jeito de processar as perdas, agora em guache e lápis de cor.
Tendo gostado de experimentar com tinta guache, principalmente depois dos exercícios de pintura na universidade. A zine da edição passada foi feita em guache e estou fazendo também uma série de ilustrações para um Calendário 2025, um lançamento inédito da minha lojinha! Vou dar uma dica: o tema é o mesmo da zine… Que tal, você se interessaria?
Se cuidem e abracem seus bichinhos.
Jana
que lindo, texto sensível!
que texto lindo! lembrei dos meus gatinhos que já se foram 😭😭😭😭